O DIA DO ESCRITOR BRASILEIRO
“Bendito o que semeia livros, livros a mancheias, e faz o povo pensar”, já dizia o grande poeta brasileiro Castro Alves. Um verso cada vez mais importante numa data como a de hoje, em que se comemora no Brasil o Dia Nacional do Escritor. Difícil imaginar onde estaria a humanidade se não fosse esse estranho exemplar da espécie, que se dedica a escrever, muitas vezes a troco de nada! Talvez ainda em cima de árvores fugindo de feras selvagens.
O seu ofício – o texto, o livro, o tratado etc. – é algo tão poderoso que são inúmeros pela história os exemplos de destruição de acervos como forma de apagar a vida real. Foi assim que a biblioteca de Alexandria, no século I a. C. foi transformada em cinzas deixando uma imensa lacuna na cultura humana. E foi também pra inibir mudanças na vida real que existiram os autos de fé, as queimas de livros em praças públicas e as listas tornando malditos quem escrevia e também os que liam.
Os exemplos no sentido oposto também atestam o poder desse amontoado de papéis, às vezes pesado, incômodo e difícil de carregar, mas mesmo assim sempre transportados por quem já percebeu que mal com eles, pior sem eles. Não foi à toa que mesmo precisando vir às pressas para a América, com as tropas de Napoleão já pisando em solo português, o rei Dom João VI não hesitou em transplantar a magnífica biblioteca da corte, com toda a sua rica coleção de escritores, para seu novo hábitat no Rio de Janeiro.
E foi também pelo poder do livro que a mitologia de nossos patrícios de além-mar registra um Luiz de Camões se condenando a perpétuo sofrimento pela perda da pessoa amada, que teve que ser abandonada à fúria dos mares para que fosse salva uma das maiores obras já escritas em língua portuguesa. Entre nós, uma Carolina Maria de Jesus, negra, pobre, catadora de papel e que ainda assim não se furtou a usar a escrita como antídoto a invisibilidade social em que vivia. Ou uma Cora Coralina, que só mostrou ao Brasil a beleza da sua poesia aos 75 anos de idade, fruto de uma vida escrevendo às escondidas do marido opressor. A paciência e a persistência são decididamente virtudes que não podem faltar ao escritor. E que nós brasileiros, por sobrevivência, temos de sobra.
Apesar dessa bela herança de valorização da arte de escrever, é fato que ela ainda não encontrou entre nós a dimensão que seria esperada para que de fato se pudesse fazer uma nação verdadeiramente grande. Isso a despeito de tantos grandes escritores, compositores, poetas, cronistas etc., que viveram e nasceram nessa terra. Como você deve saber, caro leitor, esse narrador que vos fala, e que está entre a minoria de brasileiros amantes do livro (na qual você, que está me lendo agora, provavelmente está também incluído), também teve sorte de figurar em outro grupo ainda mais seleto, o daqueles que tiveram oportunidade de escrever livros.
Enfim, pra homenagear o dia consagrado ao Escritor, aproveito primeiro para expressar a minha felicidade de poder estar em contato diário com essa língua em condição, digamos, mais especial do que a de mero falante, o que já não seria pouca coisa. Como profissional que tem como matéria-prima esse idioma, sou levado diariamente a vivenciar a gratificante experiência de penetrar num acervo tão rico de histórias, ideias, sensações e pensamentos.
Cada palavra traz em si um universo indefinível de significados, de vivências humanas que ajudaram a construir uma cultura multicontinental como a que parte da Península Ibérica e que já é, por si só, o resultado de tantas outras culturas, línguas e povos. Mas que entre nós se deixou penetrar nas centenas de línguas que nessas terras já existiam e de muitas outras que vieram Atlântico a fora, seja na fala, no canto, na memória, nos contos de quem foi pra cá trazido à força (mas que se transformaram em nós), seja nas expressões humanas, recheadas de palavras, que outros trouxeram da aventura de deixar suas pátrias para formar o microcosmo cultural chamado Brasil.
Assim como eu, cada professor, cada estudioso, cada acadêmico, cada escritor, mas também cada leitor ou apenas falante, somos todos, de uma forma ou de outra, cultores de uma tradição literária, construtores de um imenso acervo cultural, trabalhadores que dia a dia aumentam o patrimônio de uma parte da humanidade e o deixam para o conhecimento universal, para a memória da espécie humana. Os parabéns vão para todos aqueles que de alguma forma dedicam frações de sua existência ao suor do esforço que é escrever. Mesmo sem livros, prêmios ou sindicatos, vocês merecem esse título, pois ser escritor é ensinar o caminho de um mundo melhor. Parabéns a todos os escritores do Brasil!
Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.
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